terça-feira, 9 de novembro de 2010

A EMERGÊNCIA E OS DESAFIOS DA CIDADANIA DEMOCRÁTICA


Eixo 3 - Associativismo cidadão: para onde caminha?

A emergência e os dasafios da cidadania democrática
A cidadania não é algo natural e acabado; é uma construção social e histórica permanente, que inclui dimensões morais, políticas e jurídicas, estabelecendo um equilíbrio dinâmico entre valores fundamentais, como os da igualdade e da liberdade. Na construção da cidadania moderna, salienta-se, a partir do século XVIII, a importante conquista de direitos, resultante de revoluções, como a americana e a francesa, e de lutas operárias, sindicais, de mulheres, etc., pelo reconhecimento e pela dignidade, pela participação e representação livres e igualitárias e pelo usufruto comum desses direitos. Entre os direitos de cidadania incluem-se os direitos civis e políticos, conquistados ao longo dos séculos XVIII e XIX, e os direitos sociais (sociais, económicos, culturais, ambientais) conquistados ao longo do século XX. Sucintamente, podemos dizer que os direitos civis correspondem aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, segurança, …; os direitos políticos relacionam-se com os direitos à participação eleitoral e à liberdade de associação, de reunião e de organização política e sindical; e os direitos sociais dizem respeito aos direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à segurança social, em suma, ao bem-estar social.

Autores contemporâneos, como Taylor e Habermas, defendem que as novas lutas pela cidadania implicam uma política do reconhecimento e da dignidade e uma nova relação entre Estado de direito e democracia. Com efeito, identificar cidadania e democracia pode constituir um equívoco: “A relação entre cidadania e democracia é problemática, pois se o abusivo peso da igualdade colectiva sufoca as liberdades individuais, o contrário também é verdadeiro, o excesso de liberdade individual reprime as perspectivas de sobrevivência de um ‘mundo comum’. Entre um e outro caso, expandem-se as tentativas de se conciliarem cidadania e democracia, mediante experiências de democracias participativas que buscam incluir e harmonizar os ganhos da representação (escolha indirecta) individual e da assembleia (escolha directa) colectiva, ao mesmo tempo em que se reconhece a possibilidade de divergências” (Martins, 2009, p 58) .

Que entendemos por associativismo cidadão?

Ao lançarmos este debate sobre o “associativismo cidadão” pretendemos estabelecer uma relação entre o associativismo e a cidadania democrática. Jean-Louis Laville chama a atenção para uma dupla invenção do fenómeno associativo: a invenção democrática e a invenção solidária, considerando, portanto, a dupla vertente política e económica. Este autor defende que o reforço da democracia e a humanização da economia passam, em grande medida, pelo associativismo, enquanto projecto constituído a partir de acções colectivas postas em prática por cidadãos livres e iguais, tendo por referência o bem comum.

A utilização do qualificativo “cidadão” para reflectir sobre o tema do associativismo tem como objectivo, desde logo, questionar a ideia de que a cidadania é uma característica natural e inerente a todas as associações e a todas as suas práticas de intervenção na sociedade. A uma visão encantada e apologética do associativismo, que é frequentemente transmitida por representantes de associações e por representantes dos poderes políticos, nacionais e locais – que muitas vezes utilizam o elogio como estratégia de instrumentalização e domesticação das associações – pensamos que é necessário contrapor uma visão crítica, que considere as potencialidades, os problemas e as dificuldades das associações e, sobretudo, o seu projecto concreto, as suas práticas quotidianas e o seu papel na sociedade.

O elogio das “virtudes cívicas” do associativismo é muitas vezes recebido com agrado pelas associações, vendo nele uma forma de reconhecimento, ignorando, todavia, que se trata de um discurso meramente retórico, cerimonial e circunstancial. Aliás, nos últimos anos, a utilização de expressões como “civismo”, “formação cívica” e “associativismo cívico”, em detrimento de outras, como “cidadania”, “educação democrática” e “associativismo cidadão”, é reveladora de uma metamorfose que está a operar-se na sociedade, em geral, e no mundo associativo, em particular. Ou seja, enquanto a perspectiva do “civismo” e da “civilidade” remete para o cumprimento das regras do “bom comportamento”, ditadas pelo sistema vigente, baseando-se numa lógica de obediência e de mera adaptação às características e condições do mundo em que vivemos, a perspectiva da “cidadania” insere-se numa lógica de transformação da sociedade, que está hoje, mais do que nunca, a ser comandada pelos chamados “mercados”.

A situação económica e social em que nos encontramos está a passar de difícil a dramática. Portanto, a opção do associativismo só pode ser a da transformação social. Por exemplo, em Portugal, os dados e estimativas recentes revelam que cerca de 500 mil pessoas vivem em situação de pobreza extrema, recorrendo à ajuda dos bancos alimentares para não passarem fome, e mais de 2 milhões (cerca de 22% da populaçã) vivem com menos de 414 euros mensais. O factor que mais tem contribuído para esta situação é o aumento do desemprego, que se situa actualmente acima dos 10% (cerca de 600 mil desempregados). O Nobel da Economia, em 1998 - Amartya Sen – e o Nobel da Paz em 2006 - Muhammad Yunus e Grameen Bank - chamaram vivamente a atenção para este problema, considerando que a pobreza é incompatível com o direito básico e universal da liberdade humana: uma pessoa com fome não é livre (Sen); a pobreza é uma ameaça à paz e é a negação de todos os direitos humanos (Yunus).

Por exemplo, o trabalho precário, o desemprego e a pobreza afectam a democracia, na medida em que limitam as possibilidades de participação cidadã. Portanto, o associativismo cidadão faz apelo a um pensamento e a uma acção de resistência, de rebeldia e de afirmação de alternativas; de combate às desigualdades sociais e a todas as formas de exclusão; de promoção da coesão social; de revitalização da cidadania democrática; de luta pela dignidade humana. Não se trata apenas de questões terminológicas. Por exemplo, as duas perspectivas acima referidas – civismo e cidadania – distinguem-se na forma como o Estado e as organizações da sociedade civil, em particular as associações, encaram e lidam com as pessoas: ora como meros consumidores e clientes de produtos e serviços, ora como cidadãos livres e iguais, respeitando a diversidade e a individualidade. Outro exemplo prende-se com o modo como são tratados os fenómenos do desemprego, da pobreza e de todas as formas de exclusão: ora são tratados através de políticas e práticas assistencialistas, de cariz meramente caritativas e paliativas, ora mediante políticas e práticas emancipatórias, ancoradas em valores democráticos de liberdade, igualdade e solidariedade.

A acção associativa não se reduz a uma racionalidade utilitária baseada no cálculo e em jogos e relações de poder. O associativismo supõe outro tipo de modalidade do laço social e político que é a solidariedade. Apesar das semelhanças que possam existir entre as associações e outras organizações produtivas, as actividades económicas associativas são específicas, pois a solidariedade e a democracia constituem princípios de acção colectiva distintos da acção instrumental e utilitária. Diferentemente de organizações produtivas que assentam a sua acção na competição e no lucro, as associações são, essencialmente, espaços relacionais e comunicacionais. A recuperação da originalidade fundamental da associação passa, portanto, pela sua inscrição no espaço público democrático, reivindicando a liberdade e a igualdade entre os seus membros (Chanial e Laville, 2009).

Em suma, o que as “associações cidadãs” necessitam e reivindicam, legitimamente, enquanto pilares e catalisadores da democracia participativa, é de formas concretas de reconhecimento social e político que lhes permitam passar da situação de mera sobrevivência em que muitas se encontram, para uma situação de sustentabilidade material que lhes permitam assumir o seu papel interventivo na sociedade, não apenas com base numa concepção de “cidadania como direitos”, mas também numa concepção de cidadania activa e plural, tendo em conta a diversidade cultural. No mundo e no tempo em que vivemos, as associações assumem uma renovada importância, face à acentuação das desigualdades e das injustiças, ao aumento do desemprego e da pobreza, à emergência de novas formas de exploração e de exclusão. Deste modo, o “associativismo cidadão” pode contribuir activamente para contrariar a resignação e o fatalismo que está actualmente a impregnar o sentimento das pessoas e a debilitar a participação cidadã.

Todos sabemos que o mundo associativo é heterogéneo e as práticas das associações são bastante diferentes, quer nos seus modos de funcionamento interno, quer nas formas como se relacionam com a sociedade, com o Estado, com as pessoas e as comunidades. Nem todas as associações se regem pelos princípios e valores da cidadania democrática; nem todas se constituem como espaços e sujeitos promotores e produtores de cidadania. Algumas associações podem já não ter nascido com base na ideia de associativismo cidadão, noutros casos poder-se-ão ter afastado deste caminho. Com efeito, nos últimos anos, muitas associações transformaram-se em meras organizações de prestação de serviços, ou de gestão de programas de financiamento, ou de gestão da “questão social” através de práticas assistencialistas e caritativas. A democracia participativa deixou de de ser, para muitas associações, um princípio norteador da sua acção quotidiana. A dependência de apoios financeiros provenientes de entidades que têm o poder de os distribuir, muitas vezes sem qualquer definição de critérios de transparência e de justiça, colocam as próprias associações numa lógica de caridade, obrigando-as a mendigar subsídios. Desta forma, tende a criar-se uma cultura de domesticação e de dependência das associações, contrária à ideia de associativismo cidadão. As alternativas passam pela acção associativa entendida como prática de liberdade; por um associativismo cidadão emancipatório.

Algumas questões para reflexão e debate:

1. Se os actores associativos não forem capazes de reinventar novos caminhos, na perspectiva de um associativismo cidadão, quem o fará por eles?

2. Devem as associações resignar-se, agindo numa lógica de mera adaptação às circunstâncias do presente, seguindo os caminhos mais fáceis e imediatistas?

3. Podem as associações combater o fatalismo, o sentimento de que tudo é inevitável e a desesperança, como se não houvesse alternativas viáveis e novos ideais por que lutar?

4. Como pode garantir-se a sustentabilidade material do associativismo cidadão, face às diversas formas de dependência em que se encontram?

5. Como mobilizar as associações para o debate crítico e aprofundado, de modo a contrariar o atrofiamento da cidadania, quer na concepção da cidadania como direitos, quer na concepção de uma cidadania activa, expressa através de múltiplas formas de expressão da democracia participativa?

Fernando Ilídio (Universidade do Minho)
































Eixo 3 - Associativismo Cidadão – que caminhos?

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