Era uma vez um país que foi obrigado a viver muitos anos sem um tesouro que lhe tinha sido roubado e que um dia finalmente voltou a conquistar. As pessoas abraçaram-se deslumbradas, abriram o cofre onde estavam a democracia, a liberdade, a solidariedade, a cidadania e muitas outras pedras preciosas que puderam tocar com as suas próprias mãos, e com esse tesouro começaram a fazer algumas maravilhas e também alguns disparates, porque nem todos estavam preparados para esta surpresa, e porque a palavra “poder” é equívoca em português -tanto pode significar “ser dono de” ou “ter autoridade para” como “ter capacidade para” ou ainda “ter a responsabilidade de”.
Nestas andanças, o povo, com o poder nas mãos, escolheu alguns de entre si, em quem confiou para gerirem o tesouro reconquistado, pondo-o a render para todos. Contudo, entre os eleitos, havia uns tantos indivíduos contaminados pelos equívocos da palavra “poder”.
Com o passar dos tempos, os eleitos foram-se fechando com o cofre do tesouro num castelo de muros muito altos e o povo foi-se desinteressando do que se passava lá dentro, e começou a passar mais tempo sentado, nos sofás, nos estádios e noutros locais de consumo.
Hoje, é já grande o fosso entre o povo e os muros do castelo, mas não há dúvida que esse fosso tem sido escavado por todos.
Poderia este país ser Portugal? Uns poderão dizer que sim, outros que não… Alguns até talvez se lembrem que, se agora, num castelo qualquer, fosse possível descobrir um tesouro de pedras preciosas, poderíamos conseguir pagar a dívida do país, acabar com a crise e continuar tranquilos com a nossa vidinha do costume, povo para um lado, eleitos para o outro, e grandes senhores nos bastidores, todos cavando nas margens do fosso que nos separa…
Mas voltemos à estória. Há nela uma coisa que não posso aceitar: ao comparar a democracia, a liberdade, a solidariedade e a cidadania com pedras preciosas, fica uma auréola de magia depositada em coisas que estão fora de nós e que podem mesmo ser guardadas num cofre roubado ou escondido, até que venha um herói ou uma fada salvar o tesouro e devolvê-lo a todos nós…
Ora, estas quatro palavras só vivem por dentro das pessoas e só se desenvolvem na relação humanizada entre pessoas, grupos e comunidades; têm nelas uma energia própria do ser humano e potenciam-se na relação em que o “eu” e o “tu” se transformam em “nós”. Apetece dizer que são palavras colectivas, com gente dentro, tal como o são também o diálogo, a partilha, a entreajuda, a cooperação, etc, etc. Aqui, talvez alguém pudesse dizer que a liberdade é acima de tudo uma energia individual, e isso faz-me pensar numa frase de Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém; ninguém se liberta sozinho; as pessoas libertam-se em comunhão.”
De facto, é à medida que cada pessoa e cada comunidade tomam consciência de que são sujeitos activos no processo de desenvolvimento da democracia através de práticas solidárias, que os esforços se esbatem (fossos entre ricos e pobres, incluídos e excluídos, eleitos e não eleitos, etc.), dando lugar aos alicerces da cidadania.
Os mais curiosos em conhecer o que diz a Constituição Portuguesa sobre a democracia ficarão talvez surpreendidos por nela se conferir igual dignidade e importância à democracia participativa e à democracia representativa. Sobre a primeira, aliás, referem-se múltiplos espaços e mecanismos pelos quais pode ser exercida, mas já no que respeita à garantia de condições para o respectivo exercício, apenas estão estabelecidos dispositivos em relação às formas de democracia representativa.
As associações constituem obviamente espaços fundamentais para o desenvolvimento da democracia participativa. Contudo, será importante reflectirmos sobre até que ponto os processos democráticos e de participação estão vivos no seio de muitas associações, face aos condicionalismos por diversos factores; igualmente importante será pensarmos no grau de atenção e capacitação das associações relativamente à sua intervenção como sujeitos participantes na produção de cidadania.
Por outro lado, estendendo o nosso olhar para além das associações, somos capazes de identificar muitos outros espaços potenciais para o desenvolvimento da democracia participativa, desde as relações familiares aos espaços de vizinhança, às escolas, aos locais de trabalho, aos grupos informais unidos em torno de motivações comuns, aos serviços públicos, empresas, ONGs, etc.
Trata-se afinal de descobrir que no nosso movimento de procura dos caminhos para “ser mais”, entramos em comunicação com outras pessoas que vivem o mesmo movimento e se confrontam com condicionalismos semelhantes aos nossos, cada um de nós dispondo de experiências, saberes e capacidades que, postos em comum, podem superar a impotência que sentimos quando tentamos lutar sozinhos.
Esta energia alimenta-se portanto do diálogo (escutar/dizer/discutir/descobrir) que só é possível quando há proximidade. Ao longe, as pessoas diluem-se em estereótipos, penduramos-lhes etiquetas e dizemos “os imigrantes”, “as mulatas”, “os ciganos”, “as velhas”, “os pobres”, etc, etc. Pelo contrário, quando há proximidade passamos a ver a Luisa ou o João, e através do diálogo tocamo-nos como pessoas, partilhamos leituras da vida, emoções e afectos. Do diálogo pode então resultar alguma partilha de olhares e recursos que leve a um compromisso conjunto numa construção/transformação face aos desafios comuns.
E isto é democracia participativa desde que as formas de comunicação entre as pessoas envolvidas sejam relações niveladas pelo diálogo entre pessoas-sujeito, e que o trabalho de construção/ transformação seja uma cooperação em que cada um se reconhece como fazendo parte do grupo na realização duma iniciativa assumida por todos.
Outra maneira de retomar a estória com que iniciámos este texto, será dizer simplesmente que após 50 anos de ditadura, repressiva das liberdades, orgulhosamente só, e responsável pela guerra colonial, Portugal emergiu para uma era democrática há 36 anos. Mas o exercício da democracia está cada vez mais doente.
É uma doença insidiosa, que começou talvez com a aposta num modelo de desenvolvimento económico que provocou o crescimento do litoral urbano e o afundamento do interior rural; a doença alastrou entretanto pelo sedentarismo guloso duma sociedade de consumo, alimentando-se sentada com os subsídios que deviam levar a actos produtivos, deixando-se embalar por uma globalização neoliberal homogenizadora, até acordar de súbito com o estrondo da crise económica mundial.
Pelo caminho, a democracia participativa poderá estar a definhar e a democracia representativa poderá estar a alienar-se.
Ao lutar hoje pela revitalização do associativismo e da democracia participativa, temos consciência de estar à procura de caminhos alternativos em que se desenvolva a capacidade de consciência crítica e a cooperação solidária entre os cidadãos, como quem acorda de um sono letárgico e começa a enfrentar os desafios.
As propostas de caminhos a percorrer parecerão talvez insignificantes e vulneráveis, face ao peso das forças que nos constrangem.
Mas uma comunidade é um conjunto de pessoas solidárias, conscientes dos seus recursos e limitações que se põe em movimento para transformar o mundo a partir do que está ao seu alcance; e muitas comunidades poderão promover uma transformação cada vez maior.
Afinal, a democracia participativa praticada pelas associações e por muitos outros actores sociais é uma cultura e uma praxis de indignação, de resistência, de luta e de esperança, visando a afirmação de alternativas de vida mais dignas. Constitui por isso um trampolim para uma cidadania com horizontes cada vez mais largos.
Poeticamente, podemos sintetizar estas ideias, dizendo que é preciso partir duma cidade de que nos fala Ary dos Santos (A cidade é um chão de palavras pisadas / a palavra criança a palavra segredo / A cidade é um céu de palavras paradas / a palavra distância e a palavra medo ) para a cidadania simbolizada no poema Utopia de José Afonso:
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
Afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
(…)
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
Afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
(…)
António Ferreira
Bom contributo !
ResponderEliminarMas, é preciso dar mais enfoque na responsabilidade de Todos os Cidadãos, particularmente os Líderes Locais e Societários, em serem Agentes de Participação Activa.
Isto obriga a um Programa de Acção Pedagógico, mobilizador das Associações,Grupos e Movimentos para serem realmente participativos e propositivos.
zca.