Cabe-me
fechar este encontro. Faço-o
com alguns comentários em que procurarei explicitar idéias chaves que, na sua
maioria, nasceram do debate aqui travado, dos textos que me chegaram e das
conversas de corredor.
Mas
antes disso, parece-me oportuno recordar, de forma sucinta, o que estava em
causa com esta iniciativa.
No
fundo, o que nos levou a ela foi a preocupação de um conjunto de cidadãos com o
caminho para que vem enveredando a nossa democracia, onde cada vez menos se dá
voz aos cidadãos e espaço à participação. Debatê-la, questioná-la, dissecá-la,
e apontar para as alternativas que se levantam tornou-se, para esses cidadãos,
um imperativo que, não temos dúvida, é partilhado por todos e todas as que
sofremos os suas conseqüências.
Naturalmente,
não quis o nosso Movimento de Democracia Participativa reflectir apenas para
dentro. Pretendemos, pelo contrário, trazer à reflexão outros grupos de
cidadãos também implicados na busca de alternativas para a ordem que nos
domina, o que explica a presença, neste encontro, de pessoas provenientes de
várias plataformas e associações.
Crentes
em que a defesa e promoção da democracia Participativa não exclui, antes
pressupõe, a acção da Democracia Representativa - defendendo-se, de facto, uma
complementaridade que exige interacção entre ambas - tomámos a iniciativa de
chamar à referida reflexão os partidos políticos com assento na Assembleia da
República. Estamos convictos de que também para estes é essencial ouvir os
cidadãos e responder aos sinais de mudança a que estes aspiram e por que pugnam.
2
– A Democracia hoje
A
maioria dos intervenientes neste encontro questionou, de forma muito crítica e
vigorosa, a Democracia que temos, mostrando, de forma implícita, que ela se
acha bem longe da consigna “Liberdade! Igualdade! Fraternidade!” que nos vem da
Revolução Francesa.
Também
eu não tenho dúvidas em afirmá-lo, chamando a atenção para a circunstância de a
ordem que hoje nos governa não ser, efetiva e plenamente, democrática: nem pela
sua NATUREZA, nem pela FORMA que cada vez mais assume o seu funcionamento.
2.1
No
que respeita à sua NATUREZA, permito-me alertar para 7 traços característicos
que claramente contrariam a noção de universalidade e de plenitude que a
deveriam enformar.
1º -
O facto, aqui várias vezes referido, de a democracia, e a política em geral, se
encontrarem reféns da economia ou, mais grave ainda, dos poderes que dominam
presentemente a economia e as finanças, e que nos remetem para o diktat de um mercado governado a partir
da Europa (leia-se, da Alemanha) e dos Estado Unidos.
2º -
O facto de a democracia ser de classe, assistindo-se, inclusivamente, à entrega
aos privados, da riqueza que era pública, e ao alargamento do tempo de antena dos
magnates – não eleitos, e representando-se apenas a si mesmos – que surgem a
opinar sobre as políticas que se impõe prosseguir.
3º -
O facto de proteger e alimentar as desigualdades sociais, permitindo que os
mais ricos, escondidos em paraísos fiscais, se tornem ainda mais ricos, e que a
pobreza se agrave e amplie em cada dia que passe.
4º -
O facto de excluir a participação continuada dos cidadãos, legitimando-se, não
pela opinião e acção destes, em cada momento renovada, mas por um voto
depositado de 4 em 4 anos, por quem fica interdito de interferir, mesmo quando
o programa que apoiou é violado.
5º -
O facto de ser monolítica, como bem ressalta tanto da naturalidade com que se
defende que a governação tem de ser exclusiva dos partidos que apoiam a actual
ordem hegemônica (posição expressa pela utilização do eufemismo da existência
de partidos do “arco da governação” , de que estão excluídos os que defendam
políticas alternativas), como da tendência existente de alterar a lei eleitoral
em termos que expulsem do parlamento as diferenças opcionais representadas
pelos pequenos partidos.
6º -
O facto de ser periferizante, ao criar as condições para o aumento das
assimetrias rurais e urbanas através, nomeadamente, de políticas de
concentração de serviços e de imposição de regras de vivencia que impedem a
auto sustentabilidade das economias domésticas e locais.
7º -
O facto, por fim, de ser retrógrada, apontando, como aponta, para modelos de
crescimento e organização económica que procuraram vigorar há décadas, ou
séculos, e que a História reprovou.
2.2
Quanto
à FORMA, vários foram os exemplos aqui dados que nos confrontam com um
funcionamento anti-democrático do Estado e dos poderes dominantes. Não vou ser
exaustivo, destacando apenas os que, talvez, mais exijam ser contrariados:
-
A usurpação da representatividade popular: os
sacrifícios que se impõem ao povo são apresentados como fruto do empenhamento
voluntário com que todos se identificam, e não como um mero acto de espoliação
dos mais vulneráveis;
-
A manipulação do medo: em especial pela ameaça
de desemprego a quem não encarneira , mas também por práticas e posturas
intimidatórias, como as que freqüentemente acompanham as políticas de cobrança fiscal;
-
A limitação das liberdades: bem patente na
tônica na idéia de que estas terminam onde começa a ordem, fazendo da revolta e
da indignação, crimes.
-
A sacralização da Democracia Representativa:
transformação do Parlamento em templo
que se quer inviolável, aparecendo, inclusive, quem defenda o seu
fechamento ao público;
-
A intoxicação pelos discursos indutores de
acomodação: a ilusão da concertação social, a transformação dos fracassos das
políticas económicas em sucessos, a idéia de que se defende a essência dos bens
públicos quando se tomam medidas que os desmantelam, a promoção do fatalismo (“A
austeridade que sofremos é inevitável”), etc.
-
Os atentados renovados à Constituição: o alívio
que seria para a Troika, muitos dos nossos comentadores e o Governo, ver esta
suspensa...
-
A liquidação de formas democráticas de gestão
dos serviços : com o reforço do poder dos dirigente não eleitos, a fazer-se
acompanhar do silenciar e diminuição da autonomia dos dirigidos (nas escolas,
nos hospitais, nas repartições, etc.)
-
A oposição às iniciativas de cidadania (caso das
comissões de utentes e das petições) por regra não atendidas, desvalorizadas,
quando não reprimidas;
-
Uma prática político – administrativa que
alimenta a apatia o apoliticismo, e a anomia.
3
– A Democracia rejenuvescida e alternativa
É a “democracia”
que atrás descrevemos, e não a Democracia em si, ou os princípios que a
sustentam, que rejeitamos, e que queremos transformar. Se cruzarmos o conteúdo dos vários manifestos
que vêm sendo produzidos pelas muitas plataformas que se constituíram, bem como
o teor dos debates proferidos em espaços como este em que nos encontramos, pode
dizer-se que há consenso quanto à natureza e à forma da Democracia que tem de
substituir a que hoje nos hegemoniza. Em lugar desta, e, no fundo, ao encontro
da Constituição que nos rege, e que foi fruto de um momento em que os cidadão
se conseguiram fazer ouvir, queremos:
-
Uma Democracia feita da participação sistémica
das populações, isto é, em que os cidadão estejam, de forma activa, em todos os
tempos e espaços de exercício de poder e de prestação de serviços;
-
Uma Democracia soberana, não condicionada à
vontade de entidades que se impõem sem o nosso voto ou anuência;
-
Uma Democracia social e solidária, que faça do bem
estar público a grande prioridade política;
-
Uma Democracia plural, que se enriqueça na e
pela diversidade, protegendo a diferença e a individualidade da pessoa humana;
-
Uma Democracia onde se invista no combate sem
quartel às desigualdades;
-
Uma Democracia orientada para a conscientização
política das pessoas, contrariando as tendências para a indiferença;
-
Uma Democracia que redefina as relações dos
partidos com a sociedade, tornando aqueles caixas de ressonância dos interesse
e sentimentos dos eleitores;
-
Uma Democracia que integre, em vez de excluir,
as múltiplas culturas que atravessam a nossa sociedade;
-
Uma Democracia que contraponha à globalização,
que nos desestrutura e oprime, formas solidárias de cooperação com os demais
cidadão do nosso planeta;
-
Uma Democracia que requestione o modelo de
crescimento económico que temos, dando espaço e oportunidade a formas
alternativas de desenvolvimento;
-
Uma Democracia que consagre a legitimidade do direito ao protesto e à
indignação;
-
Uma Democracia que eleja a PAZ como um valor
intrínseco e inalienável, anulando os gastos com potenciais dispositivos de
guerra;
-
Uma Democracia que responsabilize quem atente
contra a sua sustentabilidade social e econômica, recusando que o povo pague as
dívidas que não contraíu.
4
– A urgência de uma resposta
Estamos
em crise, e numa crise que ameaça agravar-se a um ponto inimaginável.
Caminhando no sentido em que temos caminhado, são os próprios fundamentos da
Felicidade a que temos direito que serão destruídos. Por seu lado, opondo-nos a
tal, tornando efectiva a Democracia que queremos e que a Constituição de Abril
prometia, espera-nos, sem dúvida, um país reconfigurado e alternativo.
Quer
isto dizer que, num sentido ou no outro, a mudança que nos atinge hoje ou a que
desejamos para amanhã é de natureza civilizacional. O problema está, de facto,
para quem se não conforma com a realidade que temos, em que, se não se agir já,
pode ser, depois, tarde demais. Reagir não é só premente; é urgente.
Mas
reagir como?
Como
é evidente, e como nos diz o poeta galego António Machado, “ o caminho faz-se
caminhando”. Muito do que se impõe fazer, descobriremos fazendo.
Há,
no entanto, e desde já, alguns aspectos
- para que aponta muito do aqui se disse e alguma coisa que se pode
retirar dos manifestos que lemos – que podem ajudar-nos a intervir.
Por
um lado, importa ter presente que nem tudo é desfavorável na realidade que nos
cerca:
-
O medo, os comportamentos formatados, o
conformismo, serão um facto, mas a verdade é que o descontentamento existe e é
generalizado, dando origem a momentos de explosão, bem evidentes nas várias
grandes manifestações que o país conheceu, ou nos fortes conflitos que
rebentaram em bairros periféricos de algumas das nossas cidades;
-
Nunca se assistiu à emergência de formas
alternativas de acção e desenvolvimento como as que hoje têm lugar a nível
local, quer em meio urbano, quer em meio rural
-
As dificuldade de comunicação e mobilização que
se verificavam num passado ainda recente, vêem-se hoje superadas pela
operacionalização das redes sociais;
-
Só de forma circunscrita e pontual o mal-estar
provocado pelos tempos que vivemos se traduz em discursos contra a Democracia.
Por
outro lado, podemos, sem dúvida, explicitar um conjunto de eixos estratégicos
passíveis de orientar uma intervenção alternativa, muitos deles referidos neste
debate. De entre esses, destaco 15, pelo papel decisivo que podem ter na
construção de um movimento social alternativo e transformador:
-
O investimento em processos de emancipação e de
criação de formas de governança auto-sustentada, vivenciáveis a nível local,
tanto nos bairros periféricos, como nas aldeias e vilas que pululam no nosso
país;
-
A potenciação do descontentamento, nem sempre
visível, em torno da defesa dos bens públicos e comuns;
-
A explicitação de ideias, fortes mas simples,
passíveis de implicar as pessoas;
-
A desmontagem dos discursos hegemónicos que vêm
tendendo a naturalizar e tornar irreversíveis e incontornáveis as medidas anti
- populares adoptadas pelos poderes;
-
A interacção das plataformas sociais com a
Democracia Representativa, e, em particular, com os partidos que mostram opor-se
à orientação sócio-económica em curso;
-
A multiplicação de tempos e espaços de debate em
torno das questões críticas com que nos confrontamos;
-
A aposta na cidadanização do movimento
associativo, contrariando tendências deste para práticas agencialistas ou de
mera prestação de serviços;
-
A também aposta no estabelecimento de redes de
cooperação e resistência, implicando as várias plataformas de cidadãos e
associações;
-
A participação activa nas iniciativas de denuncia
dos actos fraudolentos ou que tendem a transferir o ónus das soluções para o
povo inocente (dívida pública, swaps, BPN , etc.) ;
-
O apoio sistemático a formas organizadas, informais
ou formais, de Democracia Participativa que surjam, como é o caso das comissões
de utentes e de algumas associações;
-
A implicação em estruturas municipais ou de
freguesia, orientadas para a resolução de problemas sectoriais das populações,
na perspectiva de induzi-las a funcionar como espaços de afirmação de direitos
e de poderes;
-
A pressão, junto dos serviços públicos, em ordem
a levá-los a adoptar práticas democráticas por recurso, por exemplo, ao uso e
abuso do livro de reclamações;
-
A desmontagem de práticas repressivas ou de
abuso do poder adoptadas pelas chamadas forças da ordem, ou mesmo dos
tribunais;
-
A rentabilização das frentes da cultura, da
educação, da saúde, da proteção social e do ambiente como fontes de
conscientização e cidadania;
-
A solidariedade com o amplo mosaico de etnias
que diversificam e enriquecem a nossa sociedade;
5
– Algumas notas finais
Quereria
terminar com 6 comentários
complementares.
O
primeiro, vai para a necessidade de, mais uma vez, tornarmos claro que o
diagnóstico que fazemos do funcionamento
actual da democracia e da responsabilidade que os partidos têm no caminho que
está a trilhar, não significa que se meça, pela mesma bitola, todos os partidos
com representação na Assembleia da República. É, para nós, claro que muitos dos
eleitos são fortes opositores das práticas e da natureza da ordem actual.
O
segundo vai para a necessidade que vejo em proclamar a importância das
ideologias, e o direito a possuí-las. As vozes que contra elas se erguem estão,
na maioria dos casos, marcadas pela hipocrisia: vemos, por exemplo, os
protagonistas da agressiva ideologia neo-liberal a vender a falsa idéia de que
o seu estar e o seu discurso são não ideológicos e se pautam pelos interesses
abstratos do país.
O
terceiro, subsequente do anterior, vai para a validade das utopias, fonte
primeira de todos os avanços feitos, até hoje, pela sociedade e pela ciência,
constituindo, nesse sentido, um forma incontornável de conhecimento.
O
quarto vai para o imperativo de agirmos tendo a consciência de que “não há
coisas grandes, mas apenas formas grandes de ver as coisas pequenas”. É
investindo no pequeno que se
constroem soluções grandes.
O
quinto, vai para algo que foi dito neste encontro: concretamente, a pertinência
de abandonarmos o pensamento dicotómico, substituindo-o por um pensamento
complexo, capaz de abarcar a globalidade, o que não quer dizer um pensamento
complicado.
O
sexto e último, vai para a reflexão que aqui se esboçou sobre os movimentos
inorgânicos. Uma coisa é perceber que o espontâneo é instável, e muitas vezes,
ineficaz... outra, é negar a sua pertinência: espontâneo foi o levantamento dos
sans – coulotes , que levou à tomada
da Bastilha, dando início à Revolução Francesa, espontânea foi a revolta da
Maria da Fonte que conduziu à queda dos Cabrais, espontâneo foi o movimento que conduziu à Comuna de
Paris; espontânea foi a insurreição dos
camponeses que desaguou na guerrilha de Zapata, no México, espontânea foi a
revolta do Gueto de Varsóvia que fez tremer o poderoso exército nazi de
ocupação da Polónia, espontâneo é o movimento que, no Brasil, tem obrigado o
governo a concessões imensas ao povo. Como dizia um líder do Movimento Operário
Internacional, morto há cerca de 90 anos, por mais decisivo que seja o elemento
consciente, ele não exclui o espontâneo: ajuda a dar-lhe sentido!
Rui d'Espiney (
ICE)